“Seu avô era eugenista”, foram algumas das acusações dirigidas à psicanalista e professora da USP, Maria Rita Kehl, após suas críticas aos movimentos identitários em uma entrevista. Ela caracteriza esses movimentos como “narcísicos”, afirmando que estão “fechados para críticas, para o outro, para o laço social”. Essa declaração gerou uma reação intensa, não fundamentada em argumentos, mas sim em uma lógica de ofensas e tentativas de “cancelamento”, refletindo uma pretensão de virtude inquestionável. Ao final, Kehl conseguiu evidenciar, de maneira similar a um experimento social, a validade de sua crítica à lógica do “silêncio imposto”.
Atitudes como essas tornaram-se comuns na esfera digital. Recentemente, houve uma repercussão negativa em relação ao diretor Walter Salles, atacado por seu “rosto” e “traço fenotípico”. Tais comportamentos que pareciam superados na ética contemporânea revelam uma intolerância que permeia uma parte significativa do ativismo identitário, frequentemente apelidado de cultura woke. Isso resultou em um retrocesso no mundo corporativo, com várias empresas reavaliando suas políticas de diversidade. É crucial destacar que esse recuo não se refere apenas à inclusão, mas à transformação das políticas de diversidade em mecanismos de exclusão e discriminação, como sugerido pelo exemplo da Starbucks. A situação aponta para o perigo de que práticas positivas de diversidade se tornem novas formas de segregação, levando à lógica de “soma zero” referida por Obama, onde identidades são consideradas fixas e algumas pessoas são invisibilizadas com base em categorias coletivas. O ex-presidente observa que cada indivíduo possui múltiplas identidades, cada uma digna de reconhecimento, ressaltando que a dignidade não deve ser vista como parte de um jogo.
Uma questão essencial a ser considerada é se a sociedade realmente deseja viver em igualdade perante a lei, o que não exclui a distribuição diferenciada de recursos. Ou será que está comprometida em constantemente romper com a lógica de igualdade jurídica, por influência de contextos sociais e de poder? Essa questão é central na análise de Francis Fukuyama sobre o sucesso e as falhas das democracias liberais. Ele explora a ideia de thymos, conceituação platônica, que pode ser vista como um motor da história humana, caracterizando um impulso por reconhecimento da dignidade. Segundo Fukuyama, as democracias liberais deveriam garantir que essa demanda por reconhecimento se tornasse acessível a todos, envolvendo não apenas igualdade perante a lei, mas também respeito e consideração. Esse entendimento levou ao conceito de “fim da história”, que não implica a eliminação de preconceitos ou desigualdades relacionadas a riquezas, mas assegura que todas as pessoas tenham suas dignidades reconhecidas por instituições. Assim, se reflete na Declaração da Independência dos Estados Unidos e na constituição brasileira, que afirma que todos são iguais ante a lei.
A questão central permanece: “Queremos realmente viver em uma sociedade de igualdade?”
No entanto, o thymos apresenta um aspecto sombrio: o desejo humano por superioridade. É comum que o desejo de isotimia seja acompanhado por uma busca por diferenciação. Em democracias liberais, esse desejo pode se expressar de maneira positiva no mercado, artes, moda e esportes, onde as regras são iguais. Contudo, é nesse espaço que reside um risco: a busca por reconhecimento igual pode se transformar em uma demanda por reconhecimento de superioridade de certos grupos, ameaçando a igualdade jurídica essencial para a democracia liberal. Essa distorção pode surgir por meio de líderes populistas, fanatismos religiosos ou pela lógica identitária em práticas sociais e legais. Essa é uma reflexão que muitos têm feito recentemente. Fukuyama menciona os direitos civis defendidos por Martin Luther King, que propunham tratamento igual para todos, independentemente da cor da pele. Entretanto, após a morte de King, essa visão evoluiu para a noção de que alguns grupos mereciam considerações especiais, minando a isotimia, base da igualdade perante a lei. Recentes decisões judiciais no Brasil exemplificam essa mudança, onde a lei sobre injúria racial é interpretada como aplicável apenas a determinados grupos, afastando-se do princípio universal.
A proposta de que direitos variem conforme a identificação em uma coletividade, influenciada por grupos de pressão, se destaca como uma preocupação significativa da atualidade, afetando identidades de origem, religião, gênero ou raça. Tal visão sugere a reconstrução de um mundo que as democracias liberais já começaram a superar, reafirmando a universalidade dos direitos que caracterizavam a promessa moderna, especialmente evidente após a queda do Muro de Berlim. Fukuyama, de maneira melancólica, reconhece a possibilidade da decadência sempre estar presente. O incremento da intolerância e da relativização de direitos nas democracias contemporâneas parece confirmar essa imagem, levando à aceitação da humilhação baseada não só na aparência, mas também em características físicas ou ancestrais. Em resposta a isso, as palavras de Leïla Slimani, uma escritora francesa de origem marroquina, ecoam como uma reflexão: “Cada um deveria incluir em sua identidade um novo componente essencial: o sentimento de pertencer à grande família humana”. Essas palavras, proferidas em um momento qualquer em São Paulo, poderiam servir como uma importante fonte de inspiração.