Os democratas perderam a legitimidade para se queixar: a prática do indulto presidencial foi comprometida pelo próprio Joe Biden, em um triste desfecho de seu governo, ao conceder perdão preventivo a dois irmãos, uma irmã e seus respectivos cônjuges. Se não cometeram erros, apesar das suspeitas de possíveis negociatas, por que seriam favorecidos de antemão?
Donald Trump também não se comportou de forma cautelosa ao conceder indultos a condenados pela invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Entre as cerca de 1.500 pessoas beneficiadas, há uma grande diversidade de comportamentos, desde o peculiar “xamã”, que se jogou nos tumultos de peito aberto, vestido de maneira excêntrica, até indivíduos que nem mesmo adentraram o Capitólio ou estiveram envolvidos em atos de violência contra as autoridades.
“Que se dane. Vamos libertar todos”, decidiu Trump, enquanto um processo complexo de análise individual das situações seria o mais apropriado. Devido às evidentes semelhanças com os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, muitos avaliam o indulto de Trump baseando-se em suas opiniões sobre o similar brasileiro. Contudo, isso não é justo, embora os envolvidos em ambos os países tenham recebido penas excessivas, desproporcionais ou simplesmente injustas.
Entretanto, quem defende o império da lei não pode agir guiado por simpatias políticas. Isso compromete uma das bases das sociedades democráticas. Para enfrentar o mau uso do sistema judiciário, com condenações distorcidas ou politizadas, a única solução não autodestrutiva é a mobilização política. A anistia, com a aprovação do Congresso, resolve a questão.
Caso contrário, entra-se em um ciclo vicioso de represálias: quando estou no poder, perjudico os adversários e protejo os aliados. Não é de se esperar nada além de retribuição quando a situação se inverte.
É alarmante observar isso acontecendo nos Estados Unidos, que, apesar de suas imperfeições, é visto como um modelo de imparcialidade judicial e de respeito às regras do jogo democrático.
Surpreendentemente, um editorial do Washington Post criticou tanto Biden quanto Trump, possivelmente resultado da nova diretriz editorial mais equilibrada proposta pelo bilionário dono do jornal. “Trump não fez distinção entre os condenados que agrediram policiais e aqueles que apenas transitavam pelos corredores do Capitólio”, afirmou o editorial, questionando a narrativa de que os participantes dos incidentes eram “avós inofensivas”.
“Os indultos de Biden representam uma ofensa à justiça de outra índole. Mas foi Biden quem se apresentou na campanha presidencial como um defensor das normas democráticas. Agora, ao finalizar seu mandato, desrespeita uma norma fundamental.”
Biden também já havia concedido indultos preventivos a outras figuras proeminentes, como Anthony Fauci, que enfrenta indícios de ter escondido informações sobre o financiamento e os objetivos das pesquisas realizadas em um laboratório chinês, onde provavelmente surgiu o vírus da covid, e Mark Milley, o chefe do Estado-Maior que se comunicou com seu homólogo chinês no último ano do governo Trump, para avisá-lo indiretamente de que qualquer conflito de natureza política não teria sua anuência.
Tudo isso gera a impressão de que não há mais responsabilidade ou a necessidade de prestar contas por ações nas altas esferas políticas. Alguém acredita que Trump não beneficiará da mesma forma membros de seu governo que tomem decisões eventualmente contestadas na justiça ou sob investigação pelo Congresso?
“Não me arrependo de nada”, declarou o “xamã” Jacob Chansley, que, evidentemente, se tornou um dos mais comentados. Ele já estava em liberdade, após cumprir dois anos e três meses de uma pena de quatro anos pelo tumulto no Congresso. Agradeceu a Trump e anunciou que agora planeja comprar armas. Embora seja uma figura folclórica, entre os indultados também há casos de extremismo grave e defesa de métodos violentos. Será que esses indivíduos se sentirão mais livres para agir?
Não é impossível. Se os parentes de Biden podem, por que eles não poderiam?