Nunca houve consenso entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da decisão de centralizar no gabinete do ministro Alexandre Moraes as diversas investigações que envolvem o ex-presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, Moraes foi designado relator do inquérito que investigava a dispersão de desinformação. Desde então, ele também acumulou as investigações relacionadas à falsificação do cartão de vacinação, ao caso das joias, aos eventos do dia 8 de janeiro e, mais recentemente, à suposta tentativa de golpe de Estado. A justificativa para concentrar esses casos sob a relatoria do mesmo ministro é que eles são considerados interligados. Jair Bolsonaro teria promovido a disseminação de notícias falsas, manipulado o seu histórico vacinal, comercializado presentes recebidos durante seu mandato e incitado a invasão e vandalismo de prédios públicos, visando desestabilizar as instituições, minar a democracia e manter-se no poder. De acordo com um dos membros mais veteranos da Corte, a centralização das investigações em um único juiz foi uma ação excepcional, sem a qual a suposta trama golpista poderia nunca ter sido revelada.
Na semana passada, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, impediu que essa exceção se tornasse uma nova regra. A Polícia Federal havia solicitado ao Supremo que remetesse ao ministro Flávio Dino o inquérito da Operação Overclean, que investiga uma organização criminosa supostamente responsável pelo desvio de milhões de reais de obras não realizadas ou superfaturadas em diversos estados. Até o momento, quinze pessoas foram detidas e um jato particular foi apreendido no aeroporto de Brasília com 1,4 milhão de reais, supostamente destinados ao pagamento de propinas a agentes públicos. Por envolver uma autoridade com prerrogativa de foro, o inquérito foi enviado ao STF, onde, por sorteio, o ministro Nunes Marques se tornou o relator. Contudo, a Polícia Federal buscou convencer o Supremo a reconsiderar e delegar a investigação a Flávio Dino, argumentando que, assim como no caso de Alexandre de Moraes relacionado a Jair Bolsonaro, a investigação deveria ser conduzida por ele devido à sua correlação.
No final do ano passado, o ministro Flávio Dino ordenou uma auditoria para verificar possíveis irregularidades no manuseio de emendas parlamentares, com indícios robustos de desvio de recursos. A Operação Overclean confirmou essas suspeitas, e a Polícia Federal considerou evidente a relação entre os casos. Ao encaminhar o inquérito ao Supremo, a PF requisitou que ele fosse atribuído a Flávio Dino, um procedimento incomum. O pedido foi negado pelo ministro Edson Fachin, que estava interinamente na presidência do STF. Depois que Nunes Marques já havia sido designado relator, a PF apresentou um segundo pedido ao presidente da Corte, uma ação ainda mais incomum. O delegado Andrei Rodrigues, diretor da PF, chegou a visitar o gabinete de Barroso para defender sua posição.
Ao recusar o pedido, Barroso evitou a criação de um precedente problemático. Existem diversos inquéritos em andamento envolvendo a possível má gestão de recursos de emendas parlamentares em vários estados. Se a tese da Polícia Federal prevalecesse, todos esses casos que envolvem autoridades com foro seriam automaticamente encaminhados a Flávio Dino. O caso da Lava-Jato serve de exemplo do que a centralização de investigações na figura de um único juiz pode acarretar. O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Antonio Pedro Melchior, ressaltou que se a PF realmente estivesse direcionando o caso a Flávio Dino sem um suporte jurídico sólido, isso configuraria uma repetição das práticas do passado, que visavam consolidar um controle universal com base em interesses específicos de perseguição. Segundo ele, tal prática compromete o princípio do juiz natural e o devido processo legal, ferindo a dignidade da Justiça.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, ao ser consultado, declarou que, ao contrário dos casos de emendas sob responsabilidade de Dino, que tratam de critérios objetivos para rastreamento de fundo público, a Operação Overclean envolve suspeitas concretas de corrupção, não havendo similaridade suficiente para unir os dois temas sob a mesma relatoria. Barroso endossou a avaliação do Ministério Público e concluiu que “não há, neste estágio das investigações, identidade de partes ou origens que justifiquem vincular este procedimento criminal às investigações comandadas pelo ministro Flávio Dino”.
A insistência em transferir o inquérito da Operação Overclean ao gabinete de Flávio Dino transcende a esfera jurídica. A Polícia Federal argumenta que a centralização das investigações sob a liderança do ex-ministro da Justiça do governo Lula poderia facilitar a desarticulação de esquemas regionais e aumentar a responsabilização de agentes políticos e administrativos que utilizam emendas parlamentares para desvio de recursos públicos. Entretanto, algumas autoridades envolvidas na investigação sugeriram que a verdadeira preocupação reside em que Nunes Marques seja menos rigoroso nas provas coletadas ou que não avance suficientemente nas apurações. Essa grave insinuativa chegou ao conhecimento do ministro por meio de seus colegas. Melchior adverte que não se deve colocar em dúvida a integridade dos ministros e do STF baseando-se em tais especulações e há receios de que o caso possa estar sendo tratado com motivações políticas.
O estado de vigilância sobre a Operação Overclean é considerado justificado. Indícios sugerem que a operação pode ser a ponta de um grande escândalo de corrupção. Recursos do Orçamento foram designados para obras em diferentes estados, e parte desse dinheiro foi desviada, retornando a alguns como propina. O deputado federal Elmar Nascimento (BA) é um dos mencionados no inquérito, levando a crer que o esquema envolve líderes e empresários com conexões ao seu partido, o União Brasil. Este partido faz parte da base de apoio ao governo Lula e contém três ministérios, incluindo o do Desenvolvimento Regional, que supervisiona o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, de onde originaram os recursos desviados. O partido também conta com figuras proeminentes como o atual presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (AP), e possui uma ala de oposição ao governo, liderada pelo ex-prefeito de Salvador, ACM Neto.
No relatório que foi enviado ao STF, a Polícia Federal indica que Elmar, uma assessora de Alcolumbre e ACM Neto aparecem em comunicações trocadas entre os membros do grupo criminoso. Os investigadores destacaram no documento que a organização criminosa possui ramificações na Bahia, relacionadas a Elmar Nascimento e ACM Neto, no Amapá, com Davi Alcolumbre, e em Goiás, onde está Ronaldo Caiado. Até o momento, não há evidência concreta que ligue diretamente esses políticos a práticas de corrupção. O delegado Andrei Rodrigues afirmou em entrevista que o essencial é a integridade do processo jurídico, que este esteja no foro competente, instruído de maneira apropriada e que leve às devidas consequências legais. Sob a liderança de Nunes Marques, os próximos passos da investigação determinarão a veracidade das preocupações do governo, da oposição, da Polícia Federal e da classe política em geral.