A desconstrução da celulose é um processo crucial para a transformação de biomassa em combustíveis e produtos químicos. Apesar de ser composta exclusivamente por unidades de glicose, a celulose, o polímero renovável mais abundante no mundo, apresenta uma estrutura microfibrilar cristalina que, em conjunto com lignina e hemiceluloses, confere à sua degradação biológica uma grande resistência. Essa complexidade resulta em um processo de degradação lenta na natureza, que exige a utilização de sistemas enzimáticos robustos. A desconstrução eficaz da celulose, que pode levar a um aumento significativo na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar, representa um desafio tecnológico que persiste há várias décadas.
Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em colaboração com outras instituições nacionais e internacionais, conseguiram isolar uma enzima potencialmente transformadora para os métodos de desconstrução da celulose. Essa enzima, que poderá facilitar a produção em grande escala do etanol de segunda geração, a partir de resíduos agroindustriais como bagaço de cana e palha de milho, foi objeto de um estudo publicado recentemente na revista Nature. A equipe identificou uma metaloenzima que aprimora a conversão da celulose através de um mecanismo até então inexplorado, envolvendo ligação ao substrato e clivagem oxidativa.
A enzima descoberta, nomeada CelOCE (Cellulose Oxidative Cleaving Enzyme), atua cortando a celulose mediante um mecanismo inovador, permitindo que outras enzimas do coquetel enzimático continuem o processo, transformando os fragmentos gerados em açúcares. O pesquisador Mário Murakami, do grupo de biocatálise e biologia sintética do CNPEM, detalhou que a CelOCE funciona como uma chave que desbloqueia a difícil estrutura da celulose, tornando-a acessível para outras enzimas de degradação. Esse processo gera uma sinergia, onde a ação da CelOCE amplifica a capacidade de atuação das enzimas auxiliares.
Em um desdobramento significativo, Murakami observa que cerca de vinte anos atrás houve uma inovadora introdução de mono-oxigenases no coquetel enzimático, que foi um marco importante na superação da resistência da celulose. Essa foi a primeira aplicação da bioquímica redox com o propósito de romper as ligações glicosídicas da celulose. Contudo, a chegada da CelOCE desafia esse paradigma estabelecido, apresentando um método mais eficiente.
A CelOCE atua ao reconhecer a extremidade da fibra de celulose, posicionando-se para realizar clivagens oxidativas que perturbam a estabilidade da estrutura cristalina, tornando-a mais suscetível à degradação realizada por enzimas clássicas. Um ponto relevante na estrutura da CelOCE é que ela é um dímero, com duas subunidades idênticas, onde uma parte se fixa na celulose e a outra pode gerar o peróxido necessário para a reação catalítica, garantindo assim um papel inovador no processo de conversão.
Diferentemente das mono-oxigenases que dependem de fontes externas de peróxidos, a CelOCE se destaca por ser autossuficiente, produzindo seu próprio peróxido no local da reação. Essa inovação possibilita um controle mais eficaz do processo, um aspecto fundamental em escalas industriais, onde a adição de peróxidos pode ser problemática.
A CelOCE é classificada como uma metaloenzima, contendo átomos de cobre que atuam como centros catalíticos. A descoberta desta enzima não foi resultado de laboratórios artificiais, mas sim de extensas pesquisas e análises de amostras de solo associadas ao bagaço de cana em regiões próximas a biorrefinarias.
A pesquisa que levou à descoberta contemplou uma abordagem multidisciplinar que incluiu metagenômica, proteômica e diversas técnicas analíticas e experimentais. Os passos foram robustos, desde a prospecção de biodiversidade até a validação do mecanismo de ação da enzima, culminando em experimentos em biorreatores de planta-piloto.
Enquanto a prova de conceito em escala piloto foi estabelecida, a aplicação potencial da CelOCE em produção industrial foi confirmada, destacando sua relevância para o Brasil – um dos líderes na produção de biocombustíveis – e para a transição energética global em resposta à crise climática.
O Brasil abriga as únicas duas biorrefinarias capazes de produzir biocombustíveis a partir da celulose em escala comercial, e há expectativa de expansão deste modelo, possibilitando novos desafios na desconstrução da biomassa. A CelOCE poderá aumentar significativamente a eficiência deste processo, que atualmente varia entre 60% a 80%, ampliando a capacidade de conversão de resíduos vegetais em produtos energéticos.
Melhorias no rendimento são vitais, considerando as grandes quantidades de resíduos que podem ser transformadas, promovendo, além do aumento da produção de etanol, a possibilidade de desenvolver também biocombustíveis para outras aplicações, como aviação.