sexta-feira, janeiro 31, 2025
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Fósseis na China podem mudar nossa compreensão sobre a humanidade

Um conjunto de fósseis com traços humanos descobertos na China tem intrigado pesquisadores por muitos anos, desafiando definições e explicações. Os fragmentos de crânio, dentes, mandíbulas e outras partes encontradas em diversas regiões do país são evidências claras de hominídeos arcaicos — termo técnico usado para designar espécies da linha evolutiva humana — que habitaram a Terra entre 300 mil e 100 mil anos atrás. Christopher Bae, professor no departamento de antropologia da Universidade do Havai em Manoa, que passou um longo período em Pequim, faz parte do grupo de cientistas que reexamina esses fósseis fascinantes sob uma nova perspectiva. Juntamente com sua colega Wu Xiujie, professora sênior no Instituto de Paleontologia e Paleoantropologia de Vertebrados em Pequim, eles sugerem que pode ser o momento de reconhecer formalmente uma espécie antiga de hominídeo ainda desconhecida, propondo o reconhecimento oficial de uma nova espécie na ciência.

A característica mais notável desse ancestral humano ainda não identificado? Um cérebro excepcionalmente grande, maior que o dos Homo sapiens, a única espécie de hominídeo que sobreviveu. Essa particularidade é refletida no nome sugerido para a espécie, anunciado por Bae e Wu em um artigo de novembro na revista científica Nature Communications: Homo juluensis, que é uma referência a “ju lu”, expressão chinesa que significa cabeça grande. “Seus crânios são realmente muito grandes, a capacidade craniana estimada é de 1.700 a 1.800 centímetros cúbicos”, afirmou Bae, que também descreveu o Homo juluensis em seu livro “A Paleoantropologia da Ásia Oriental”, lançado em setembro. “Nossa capacidade mínima é em torno de 1.350 cc, em média, somos cerca de 1.450 (cc). Não é uma magnitude muito maior, mas é bastante robusto”. A proposta tem gerado debate entre paleoantropólogos, e alguns cientistas divergem sobre se essa nova classificação realmente justifica a criação de uma nova espécie. No entanto, se as análises de Bae e Wu estiverem corretas, esses fósseis podem representar a chave para desvendar um dos maiores mistérios da evolução humana: um quebra-cabeça que começou com a descoberta de um pequeno osso de dedo mindinho na Caverna Denisova, nas Montanhas Altai, no sul da Sibéria.

A análise de DNA desse diminuto fóssil revelou em 2010 que ele pertencia a uma população humana antiga distinta, que os pesquisadores nomearam de denisovanos. Muitas pessoas vivas hoje possuem traços do DNA denisovano, mas devido à escassez de fósseis desses ancestrais extintos, os especialistas ainda não compreendem completamente sua aparência, habitat ou as razões para sua extinção.

Os crânios, recriados digitalmente a partir dos restos fossilizados encontrados em Xujiayao e Xuchang, apresentam uma forma grande, baixa e larga, que é bastante distinta dos crânios de outras espécies de hominídeos conhecidas. Os restos chineses, considerados difíceis de categorizar, incluem 21 fósseis descobertos na década de 1970 no sítio de Xujiayao, localizado na fronteira das províncias de Shanxi e Hebei, onde foram identificados fragmentos de 16 indivíduos que viveram entre 200 mil e 160 mil anos atrás. Outros locais significativos incluem Lingjing, no Condado de Xuchang, onde crânios parciais foram encontrados entre 2007 e 2014, e a cidade de Harbin, na província de Heilongjiang, onde um crânio que estava no fundo de um poço há cerca de 90 anos foi recentemente descoberto.

Grande parte desses fósseis havia sido deixada de lado, pois, na época em que foram encontrados nas décadas de 1970 e 1980, as crenças sobre as origens humanas eram muito diferentes do que se considera hoje. Naquele período, muitos paleoantropólogos acreditavam que as populações humanas atuais tinham se desenvolvido regionalmente a partir de hominídeos arcaicos, como o Homo erectus, que saiu da África há cerca de 2 milhões de anos. Esse modelo, conhecido como multiregionalismo, que agora é amplamente contestado, postulava que apenas uma única espécie de hominídeo havia evoluído ao longo do tempo para se tornar Homo sapiens. Nesse contexto, os fósseis de Xujiayao e outros com características incomuns encontrados na China foram classificados como intermediários entre hominídeos mais primitivos, como o Homo erectus, e aqueles mais modernos. O modelo multirregional, que sugeria origens ancestrais distintas para o povo chinês, estava alinhado com sentimentos nacionalistas e era especialmente enraizado entre acadêmicos chineses.

Contudo, os cientistas atualmente possuem evidências genéticas substanciais que apoiam uma origem africana comum para todos os Homo sapiens. O modelo agora amplamente aceito é a teoria da “saída da África”, que sugere que os ancestrais dos humanos modernos que vivem fora da África deixaram o continente e se espalharam pelo mundo há entre 50 mil e 60 mil anos, embora alguns grupos iniciais de Homo sapiens possam ter partido anteriormente, há cerca de 200 mil anos. Descobertas recentes na Ásia e na África, abrangendo as últimas décadas, como o Homo floresiensis, pequenos hominídeos que habitaram a ilha de Flores, na Indonésia, há cerca de 100 mil a 50 mil anos, e o Homo naledi, igualmente pequenos e que viveram na África do Sul há 300 mil anos, sugerem que a atual predominância de uma única espécie de hominídeo é uma exceção à regra.

“Os últimos 50 anos de descobertas fósseis indicam que não havia uma única linhagem de hominídeos durante qualquer período do passado, o que torna os humanos atuais bastante únicos”, declarou Carrie Mongle, professora assistente do departamento de antropologia da Universidade Stony Brook, nos Estados Unidos. “Diante disso, não seria irrazoável sugerir que a quantidade de espécies refletidas nos fósseis asiáticos mereça uma reavaliação — não devemos simplesmente assumir que todos podem ser agrupados juntos”.

A análise abrangente dos fósseis de Xujiayao realizada por Bae e Wu conseguiu reconstruir digitalmente um dos crânios encontrados, e a forma apresentava características que se distanciavam completamente dos crânios de outras espécies conhecidas, como os Neandertais ou Homo erectus, bem como dos globosos crânios dos Homo sapiens. A dupla comparou essas características com fósseis intrigantes descobertos recentemente na região. O crânio reconstruído era similar a outros crânios excepcionalmente grandes encontrados no Condado de Xuchang, que foram datados entre 2007 e 2014 e apresentavam capacidade craniana de 1.800 centímetros cúbicos.

Os dentes descobertos em Xujiayao também tinham semelhança com dentes de fósseis anteriores: um dente em uma mandíbula encontrada no Tibete na década de 1980, onde em 2020 foram encontrados sedimentos de caverna conectados aos Denisovanos; um dente descoberto em uma caverna no Laos e descrito em 2022, também atribuído aos Denisovanos; e um dente proveniente de uma loja de antiguidades em Taiwan em 2008, conhecido como a mandíbula de Penghu. Com base nessas evidências, Bae e Wu propõem que os hominídeos a que esses fragmentos pertencem devem ser considerados como Homo juluensis. Bae destacou que sabia que propor a inclusão dos restos denisovanos “causaria reações”, mas acredita que sua equipe apresenta um argumento convincente.

A professora Mongle e outros paleoantropólogos, no entanto, afirmam que é prematuro agrupar os restos denisovanos junto aos fósseis de Xujiayao e classificá-los como uma nova espécie, Homo juluensis. “O principal argumento dessa equipe para nomear uma nova espécie baseia-se na forma da caixa craniana, mas não há fósseis cranianos de denisovanos conhecidos que possam ser comparados diretamente com os fragmentos de Xujiayao”, afirmou Ryan McCrae, paleoantropólogo do Museu Nacional de História Natural do Smithsonian, que não participou da pesquisa de Bae e Wu. “Sem essa capacidade de comparação direta 1-1 com as evidências mais fortes, agrupar esses fósseis parece um passo apressado”.

McCrae também mencionou a limitação de evidências genéticas, que têm se tornado cada vez mais essenciais na classificação de espécies. Geralmente, grandes descobertas são feitas quando uma pá atinge um crânio ou outro osso significante dentro de uma caverna. No entanto, os denisovanos foram os primeiros humanos arcaicos identificados em laboratório, devido aos avanços no estudo de DNA antigo, o que os torna particularmente enigmáticos. Até agora, todos os espécimes esqueléticos denisovanos descobertos são fragmentos, nenhum dos quais é considerado distinto o suficiente para merecer um nome científico formal, como Homo sapiens ou Homo neanderthalensis. Um crânio é tipicamente, embora não exclusivamente, o tipo de espécime associado a uma nova espécie, pois retém muitas características peculiares.

“Infelizmente, ainda não sabemos como os denisovanos se pareciam”, lamentou McCrae. “Eles são conhecidos principalmente por meio de dados genéticos, não por fósseis, portanto, qualquer comparação deve incluir dados genéticos para fundamentar melhor a ideia de que existe mais dessa espécie”.

O estudo de fósseis antigos é uma prática comum na pesquisa científica, como destacou Xijun Ni, professor no Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia em Pequim. Entretanto, embora seja razoável considerar que os restos analisados por Bae e Wu possam representar um tipo de homo antigo ainda não reconhecido, Ni acredita que ainda não foram apresentados dados suficientes para classificar oficialmente o Homo juluensis como uma nova espécie — um processo que costuma envolver análises prolongadas e frequentemente é contestado. Ni e Chris Stringer, pesquisador em origens humanas do Museu de História Natural de Londres, têm uma teoria alternativa sobre como esses fósseis se integram, baseada em suas investigações sobre o crânio de um hominídeo antigo conhecido como “Homem Dragão”. Esse crânio foi encontrado pela primeira vez na literatura científica em 2021 e tem uma história fascinante.

O crânio foi descoberto em 1933, às margens do Rio Songhua em Harbin, China, por um trabalhador forçado japonês que manteve o crânio guardado em um poço por mais de 80 anos, revelando-o apenas em sua leito de morte. Stringer afirmou que seu trabalho com Ni sugere que a maioria dos fósseis que Bae categorizou como H. juluensis são na verdade morfologicamente mais compatíveis com o crânio de Harbin. Essa interpretação sugere que os espécimes de Xujiayao e os restos denisovanos poderiam pertencer ao mesmo grupo, que recebeu a denominação científica de Homo longi.

“Assim, o bem preservado crânio de Harbin representaria um denisovano primitivo. Investigações em curso por outros grupos estão apontando para a mesma conclusão”, destacou Stringer, acrescentando que novas pesquisas sobre o Homem Dragão serão divulgadas ainda este ano. Mongle, da Universidade Stony Brook, expressou que, embora apoiasse a ideia de que múltiplas espécies de hominídeos antigos podem ter existido na Ásia, ainda acredita que os fósseis identificados por Bae como pertencentes aos “cabeçudos” também se assemelham ao crânio do Homo longi.

Bae comentou que sua análise indica que o crânio do Homem Dragão é mais compatível com fósseis encontrados em locais chineses em Dali, na província de Shaanxi, e Jinniushan, na província de Liaoning, datados de 1978 e 1984, respectivamente, que contribuíram para a formação do Homo longi. A determinação do nome de uma nova espécie como Homo juluensis é responsabilidade dos pesquisadores, observou Ni, mas eles devem seguir as diretrizes da Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica. Contudo, não há um processo oficial de aprovação, e a aceitação ou não do nome da espécie ficará a cargo de outros pesquisadores que concordem e utilizem na literatura científica.

Ni ressaltou que os denisovanos compõem uma população conhecida de hominídeos antigos, e por isso a definição ou uma versão dela não deve ser automaticamente aplicada a outros, como os hominídeos de Xujiayao, mesmo que eles acabem sendo da mesma espécie. Ele comparou isto à ideia de rotular todos os europeus como anglo-saxões. “Me oponho fortemente à visão de que hominídeos asiáticos do Pleistoceno Médio, reconhecidos ou não, sejam considerados denisovanos, uma vez que denisovano é somente um nome de população”, afirmou Ni. Bae compartilhou dessa visão. “Muitos paleoantropólogos ocidentais afirmam que desejam classificar os fósseis chineses como denisovanos”, disse ele. “Para nós, os denisovanos não constituem realmente uma espécie”. A primeira pessoa ou equipe que conseguir evidências robustas o bastante para nomear os denisovanos como uma espécie distinta terá a liberdade de nomeá-los conforme desejarem, conforme McCrae.

“Os denisovanos não possuem um nome taxonômico formal por falta de material comparativo para nomeá-los como uma nova espécie”, acrescentou McCrae. “Isso pode ser benéfico, pois permite que o campo tenha mais tempo para buscar evidências fósseis dos denisovanos antes de determinar um novo nome, mas, por outro lado, isso também torna esses importantes fósseis “disponíveis” para nomeações prematuras”. Alguns paleoantropólogos expressam esperança de que, quando os denisovanos receberem uma designação formal como espécie, o nome refletirá o local original da Caverna Denisova e o ubíquo nome “denisovanos”, embora McCrae admita que não há garantias de que isso ocorrerá. O campo se caracteriza por fosséis que são, em certa medida, “confusos” morfologicamente. Alguns parecem distintos, enquanto outros mostram características tanto dos Neandertais quanto dos Homo sapiens — e muitos apresentam uma combinação de ambas.

“Classificar prematuramente fósseis em espécies pode obscurecer a verdadeira história do que se passava no mundo naquela época, e logisticamente é muito desafiador reverter uma decisão após a divulgação dos nomes das espécies, independentemente de haver bom suporte para isso ou não”, concluiu McCrae.

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