A arqueóloga Niède Guidon, falecida aos 92 anos, deixou um impacto significativo que vai além do campo científico. Suas contribuições no Parque Nacional Serra da Capivara, localizado no Piauí, desafiaram milhares de anos de teorias sobre a ocupação das Américas. Além disso, seu trabalho social resultou em transformação em uma das áreas mais carentes do Brasil. O parque, que recebeu a distinção de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, deve sua criação à dedicação de Guidon, que passou seis décadas envolvida na pesquisa e preservação do local.
Natural de Jaú, São Paulo, Guidon conheceu a região de São Raimundo Nonato em 1963, ao ver fotos de pinturas rupestres no Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Após um período de exílio na França e especialização em Arqueologia Pré-histórica na Sorbonne, retornou ao Brasil em 1973 para liderar uma missão franco-brasileira que localizou 55 sítios arqueológicos. A missão, financiada pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, marcou o início de um novo entendimento sobre a pré-história das Américas.
O Parque Nacional Serra da Capivara foi estabelecido em 1979 e recebeu o título da Unesco em 1991. Sob sua direção, mais de 800 sítios e 35 mil pinturas rupestres foram documentados. A pesquisa de Guidon no sítio da Pedra Furada trouxe à tona descobertas que desafiaram a arqueologia convencional. Enquanto a Teoria de Clóvis sugeria que os primeiros humanos chegaram às Américas há 12 mil anos, suas escavações encontraram ferramentas de pedra e sinais de fogo datados em até 32 mil anos, com algumas interpretações sugerindo até 100 mil anos de antiguidade.
Embora sua hipótese tenha sido recebida inicialmente com ceticismo, obteve reconhecimento em 2006, quando o especialista francês Eric Boëda validou a autenticidade dos artefatos. A ideia de que os primeiros habitantes podiam ter chegado à América diretamente da África pelo Atlântico ainda gera debate entre especialistas, mas já alterou significativamente a discussão sobre a colonização do continente.
Além de suas contribuições acadêmicas, Guidon teve um papel transformador na comunidade de São Raimundo Nonato. Em 1986, fundou a Fundação Museu do Homem Americano, que não apenas protege o parque, mas também promoveu iniciativas de educação e desenvolvimento econômico local. Durante sua gestão, foram criadas escolas, postos de saúde e uma fábrica de cerâmica, que hoje exporta produtos e conta com uma linha exclusiva em uma renomada loja de móveis.
Moradores foram capacitados como guias e “guardiões” do parque, enquanto crianças tiveram acesso a um ensino integral, incluindo aulas de português, matemática e artes, criando um modelo educacional inovador para a área. Guidon também lutou em prol da construção de um aeroporto local, fundamental para o crescimento do turismo na região.
Num campo predominantemente masculino, Guidon enfrentou inúmeros desafios, desde ameaças e resistência política até dificuldades pessoais, sempre mantendo seu compromisso com sua missão. Sua trajetória se tornou uma fonte de inspiração para futuras gerações de mulheres na pesquisa, destacando o papel da ciência como catalisador de mudanças sociais.
Atualmente, o Parque Nacional Serra da Capivara é um exemplo de conservação e desenvolvimento sustentável. O legado de Niède Guidon é indelével, não apenas nas marcas deixadas nas rochas do Piauí, mas também na vida das pessoas que experimentaram transformações significativas em suas realidades, resultantes da dedicação de uma mulher que desafiou e reescreveu a história.