No dia 31 de março, ocorre um marco significativo no Brasil, já que generais estão sendo julgados pela primeira vez desde o golpe de 1964. A importância de responsabilizar os envolvidos no golpe de 8 de janeiro deve ser compreendida dentro de um contexto histórico que inclui a impunidade dos torturadores durante a ditadura militar, um dos maiores erros do país após a escravidão.
Uma nova narrativa tem ganho força em Brasília, sugerindo que os eventos atuais relativos à trama golpista podem servir como um meio de curar as feridas deixadas pelo golpe de 1964. Essa perspectiva propõe um encerramento simbólico dos crimes imprescritíveis perpetrados durante o regime militar.
No entanto, essa visão é equivocada. Existe uma conexão indiscutível entre os dois episódios. Se o Brasil tivesse adotado um caminho diferente, priorizando a justiça de transição e a responsabilização dos golpistas, o cenário atual poderia ser distinto. Isso poderia ter evitado que um presidente homenageasse torturadores e que a destruição da sede dos Três Poderes ocorresse após as eleições de 2022.
As Forças Armadas mantêm uma tradição de comportamentos golpistas desde a fundação da República. Presidentes militares e civis, como Artur Bernardes, governaram sob estados de sítio. A história é marcada por tentativas de golpes e atos violentos por parte das forças armadas.
Entre 1946 e 1964, houve constantes ameaças e tentativas de impedir a posse de presidentes. Embora existisse um governo formal e relativa liberdade de imprensa, a democracia permanecia vulnerável e intimidada. Um caso extremo foi o suicídio de um presidente. Movimentos conhecidos como “revoltas” também eram tentativas golpistas disfarçadas de ações contra corrupção e problemas associados à esquerda.
O dia 31 de março de 1964 é lembrado pela ação conjunta do Exército, Marinha e Aeronáutica, que se apresentaram como defensores morais contra o comunismo. Nesse contexto, um presidente que não possuía vínculos com o comunismo foi derrubado. João Goulart, por sua vez, era um político trabalhista.
Esses eventos desencadearam um período de 21 anos marcado por escuridão e repressão, que se traduziu no fechamento do Congresso, cassação de opositores e mudanças na composição do Supremo Tribunal. A tortura se tornou uma prática institucionalizada e os quartéis, que deveriam proteger a população, transformaram-se em centros de violência.
Ainda existem conexões com o presente. Em 1977, o general Sylvio Frota buscou intensificar a repressão, propondo mais persecções e torturas, em um governo que começava lentamente a se abrir. O ex-presidente Geisel, que havia fechado o Congresso, enfrentou resistência da linha dura que clamava por um novo AI-5.
O general Augusto Heleno, atual réu relacionado a uma tentativa de golpe desde a redemocratização em 1985, era assessor de Frota. Isso evidencia uma cultura de impunidade e constantes crises antidemocráticas no Brasil. A responsabilização dos golpistas de agora é imprescindível, mas não resolve os horrores deixados pela ditadura. Elementos do regime militar estão envolvidos em atividades ilícitas que resultaram na morte de figuras como Marielle Franco e Bruno Pereira.
A constituição cidadã, vigente nos últimos 40 anos, proporcionou um longo período de estabilidade institucional. Contudo, esse progresso foi ameaçado durante o governo anterior, que apresentou sinais de uma nova tentativa de golpe, apesar da alternância no poder político.
Recentemente, em um show, foram entoadas canções que evocam as dores da ditadura. Imagens de vítimas, como Rubens Paiva e Vladimir Herzog, foram projetadas, conectando esses eventos ao cenário atual e ao apelo por um fim à impunidade. As feridas da ditadura permanecem não cicatrizadas, e novas dores emergem.
O acordo entre militares e segmentos da sociedade civil que levou à anistia em 1979 e à redemocratização em 1985 é um dos maiores encobrimentos de crimes contra a humanidade no Brasil. Militares têm se beneficiado dessa impunidade, e essa realidade não foi transformada pelo Supremo Tribunal Federal, que falhou em enfrentar essa questão.
No atual contexto, a presença de generais no banco dos réus não representa uma nova fase, mas sim a recorrência de um clima antidemocrático que continua a ameaçar a sociedade. A crítica à situação é evidente em foros artísticos, onde as memórias da resistência se entrelaçam com as expressões contemporâneas de descontentamento.